Marcamos às onze da manhã de um sábado, num café do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Não nos conhecíamos, conversamos algumas vezes por telefone e e-mail, apenas. Tínhamos um objetivo em comum: escrever um livro sobre os 18 anos dos restaurantes Ruella, e também sobre a vida de sua criadora, Danielle Dahoui.

Chovia. Eu estava atrasada. O café estava cheio. Sabia que ela estaria com uma roupa laranja: avisou-me em uma de nossas rápidas conversas por SMS. Ela sabia que eu parecia gringa. Imaginava que a encontraria sozinha numa mesa, tomando um café, enquanto me esperava. Numa rápida passada de olhos, não vi ninguém que correspondesse à imagem que fiz dela. Rodei o café e não vi nenhuma mulher sozinha, de laranja. Até que alguém acenou para mim, sorridente, do meio de uma mesa imensa e lotada. Era Danielle Dahoui, minha personagem.

Apesar de ter frequentado e amado o Ruella da Vila Olímpia, este foi o primeiro cenário em que a vi: rodeada de gente, numa mesa comprida, imensa, compartilhada, sorrindo e conversando. Imaginei que fossem seus amigos, que revia em seu fim-de-semana no Rio de Janeiro. Mas ela não os conhecia, ou melhor: disse que acabara de conhecê-los enquanto me esperava.

Nunca concordei com o ditado “a primeira impressão é a que fica”. Nem sempre encontramos as pessoas em seus melhores momentos, somos passíveis de criar e formar impressões equivocadas. Mas naquela rápida visão acho que formulei, corretamente, uma opinião sobre Dahoui: uma mulher com imensa capacidade de agregar pessoas. Isso está na alma dela. Eu, por exemplo, teria escolhido um canto, pediria um café, abriria um livro ou jornal, e entre uma página e outra esticaria minhas orelhas, discretamente, como quem não está nem aí, para ouvir conversas alheias, como quem simplesmente aprecia a paisagem.

Seguimos sentadas na mesa para vinte pessoas, enquanto eu comia um pan au chocolat que se desfazia em farelos pela minha roupa. Danielle me contou grande parte da sua vida, enquanto a mesa ia se esvaziando. Que nasceu no Recife, criada pela avó, que não conhecia o pai até os 17 anos, que morou em cima de uma barraca em Arraial d’Ajuda, que fazia festas em Petrópolis aos 17 anos, que tinha frequentado o Baixo Leblon com a turma de Cazuza, que foi morar na França aos 21 anos com 500 dólares no bolso, que passou fome, que lavou prato, que descobriu a sua vocação para a cozinha em Paris, entre outros fatos de uma vida movimentada que jamais caberia em uma primeira conversa. Falávamos de Paris quando uma senhora se sentou ao nosso lado, abriu um livro e pediu uma taça de vinho. A esta altura, éramos só nós três, sentadas do mesmo lado na mesa.

Percebi que a senhora de vez em quando nos olhava. Supus que ela seria uma das minhas, ouvindo conversas alheias com o livro aberto. Mas minha impressão estava errada.

“Será que você poderia parar de bater na mesa?”, disse ela para Dahoui, rispidamente. Diante dos nossos olhares de surpresa, completou: “Você bate toda hora e estou lendo. Está me atrapalhando”.

“Desculpa”, respondeu Dahoui, constrangida. “Não percebi”.

“Você é muito expansiva, não é? Isso às vezes incomoda as pessoas”, completou a senhora.

Eu não tinha percebido que Danielle batia na mesa, de toda maneira não era o suficiente para incomodar alguém. Ela estava feliz e animada com o projeto. Como boa leitora e espiã de cafés, também não entendi porque a senhora tinha se sentado justamente ao nosso lado, naquela mesa imensa: se o seu objetivo era ler, havia lugar para que se sentasse sozinha.

Dahoui passou o resto do tempo com medo de bater a mão na mesa. Toda vez que ameaçava fazer o gesto automático, ela parava no meio. Achávamos graça disso e seguíamos conversando. Até que uma conversa entre o garçom e a senhora nos chamou a atenção. A mulher contava os centavos, constrangida: o dinheiro não dava para as três taças de vinho que havia tomado.

 “Só agora vi que não tinha dinheiro”, justificou-se, agora ela mesma constrangida.

Danielle imediatamente se ofereceu para pagar os dez reais que faltavam. A mulher aceitou, sem pestanejar, agradecendo muito. Que mulher estranha, pensei. Por que aceitar o dinheiro de alguém que tinha tratado com tamanha indelicadeza? Eu jamais aceitaria o favor de alguém que eu tinha acabado de implicar ou constranger.

A mulher pagou sua conta com o dinheiro de Danielle Dahoui e tornou-se subitamente simpática. Deixou o olhar inquisidor de lado e passou a olhá-la com admiração. Perguntou nossos nomes e de onde éramos.

“Dahoui”, disse Danielle.

“Que nome diferente”, observou a mulher.

“É francês. Árabe”, completou Dahoui, com os mesmos olhos firmes e diretos com que costuma encarar seus interlocutores.

Deste primeiro encontro, guardei esta cena e uma impressão de Danielle Dahoui: a mesa é o seu habitat. Ela nasceu para isso, seja onde for. Cozinhar, comer e receber são atos de amor, algo que se troca, que se faz para ver os outros bem. E é o que ela sabe e gosta de fazer. Dahoui interage com a mesa até ao bater, involuntariamente, as mãos sobre a madeira. Uma palavra sobre ela ficou em minha mente: “expansiva”. Foi essa a primeira impressão que ela me causou: um ser humano em constante expansão.

por Christiane Tassis